Caetano Veloso. Caetano Veloso.




1. Tropicália.

Sobre a cabeça os aviões, sob os meus pés os caminhões, aponta contra os chapadões meu nariz, eu organizo o movimiento, eu oriento o carnaval, eu inauguro o monumento, no planalto central do país. Viva a bossa, biva a palhoça, viva a bossa, biva a palhoça.

O monumento é de papel crepom e prata, os olhos verdes da mulata, a cabeleira esconde atrás da verde mata, o luar do sertão, o monumento não tem porta, a entrada é uma rua antiga, estreita e torta, e no joelho uma criança, sorridente, feia e morta, estende a mão. Viva a mata, viva a mulata, viva a mata, viva a mulata.

No pátio interno há uma piscina com água azul de Amaralina, coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis, na mão direita tem uma roseira, autenticando eterna primavera e no jardim os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis. Viva Maria, viva a Bahia, viva Maria, viva a Bahia.

No pulso esquerdo o bang-bang em suas veias corre muito pouco sangue, mas seu coração balança um samba de tamborim, emite acordes disonantes, pelos cinco mil alto-falantes, senhoras e senhores, ele põe os olhos grandes sobre mim. Viva Iracema, viva Ipanema, viva Iracema, viva Ipanema.

Domingo é o fino-da-bossa, segunda-feira está na fossa, terça-feira vai à roça, porém, o monumento é bem moderno, não disse nada do modelo, do meu terno, que tudo mais vá pro inferno, meu bem, que tudo mais vá pro inferno, meu bem. Viva a banda, Carmem Miranda, viva a banda, Carmem Miranda, viva a banda, Carmem Miranda.


2. Clarice.

Há muita gente, apagada pelo tempo, nos papéis desta lembrança que tão pouco me ficou, igrejas brancas, luas claras na varandas, jardins de sonho e cirandas, foguetes claros no ar. Que mistério tem Clarice, que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme, no coração.

Clarice era morena como as manhãs são morenas, era pequena no jeito de não ser quase ninguém, andou conosco caminos de frutas e passarinhos mas jamais quis se despir entre os meninos e os peixes, entre os meninos e os peixes, entre os meninos e os peixes do rio, do rio. Que mistério tem Clarice, que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme, no coração.

Tinha receio do frio, medo de assombração, um corpo que não mostraba, feito de adivinhações, os botões sempre fechados, Clarice tinha o recato de convento e procissão, eu pergunto o mistério. Que mistério tem Clarice pra guardar-se assim tão firme, no coração.

Soldado fez continência, o coronel reverência, o padre fez penitência, três novenas e uma trezena, mas Clarice era a inocência, nunca mostrou-se a ninguém, fez-se modelo das lendas, fez-se modelo das lendas, das lendas que nos contaram as avós. Que mistério tem Clarice, que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme, no coração.

Tem que um dia amanhecia e Clarice assistiu minha partida, chorando pediu lembranças e vendo o barco se afastar de Amaralina, fesesperadamente linda, soluçando e lentamente. E lentamente despiu o corpo moreno, e entre todos os presentes até que seu amor sumisse, permaneceu no adeus chorando e nua, para que a tivesse toda, todo o tempo que existisse. Que mistério tem Clarice, que mistério tem Clarice, pra guardar-se assim tão firme, no coração.


3. No dia em que eu vim-me embora.

No dia em que eu vim-me embora, minha mãe chorava em ai, minha irmã chorava em ui, e eu nem olhava pra tras. No dia que eu vim-me embora, não teve nada de mais, mala de couro forrada com pano forte brim cáqui, minha vó já quase morta, minha mãe até a porta, minha irmã até a rua e até o porto meu pai.

O qual não disse palavra durante todo o caminho, e quando eu me vi sozinho, vi que não entendia nada, nem de pro que eu ia indo, nem dos sonhos que eu sonhava, senti apenas que a mala de couro que eu carregava, embora estando forrada, fedia, cheirava mal.

Afora isto ia indo, atravessando, seguindo, nem chorando nem sorrindo, sozinho pra capital, nem chorando nem sorrindo, sozinho pra capital…


4. Alegria, alegria.

Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, no sol de quase dezembro, eu vou. O sol se reparte em crimes, espaçonaves, guerrilhas, em cardinales bonitas, eu vou. Em caras de presidentes, em grandes beijos de amor, em dentes, pernas, bandeiras, bomba e Brigitte Bardot.

O sol nas bancas de revista, me enche de alegria e preguiça, quem lê tanta notícia, eu vou. Por entre fotos e nomes, os olhos cheios de cores, o peito cheio de amores vãos, eu vou, por que não, por que não.

Ela pensa em casamento e eu nunca mais fui à escola, sem lenço e sem documento, eu vou. Eu tomo uma coca-cola, ela pensa em casamento e uma canção me consola, eu vou. Por entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fome, sem telefone, no coração do Brasil.

Ela nem sabe até pensei em cantar na televisão, o sol é tão bonito, eu vou. Sem lenço, sem documento, nada no bolso ou nas mãos, eu quero seguir vivendo, amor, eu vou, por que não, por que não...


5. Onde andarás.

Onde andarás nesta tarde vazia, tão clara e sem fim, enquanto o mar bate azul em Ipanema, em que bar, em que cinema te esqueces de mim, enquanto o mar bate azul em Ipanema, em que bar, em que cinema te esqueces.

Eu sei, meu endereço apagaste do teu coração, a cigarra do apartamento, o chão de cimento existem em vão, não serve pra nada a escada, o elevador, já não serve pra nada a janela, a cortina amarela, perdi meu amor.

E é por isso que eu saio pra rua, sem saber pra quê, na esperança talvez de que o acaso, por mero descaso me leve a você, na esperança talvez de que o acaso, por mero descaso, me leve, eu sei.


6. Anunciação.

Maria, Maria, nosso filho está perto, esta noite eu o vi em sonhos, me chamando, antes já o pressentia, esta noite eu o vi de repente, vagamente. Maria, Maria, Maria tenho medo que você não chegue a tempo, que ele apareça em meu quarto noturno com uma faca na mão e um sorriso violento nos lábios, é preciso impedir que ele cresça longe de nós e não nos reconheça.

Maria, Maria, não pense que estou louco, nosso filho já nasceu e se não tomarmos conhecimento, como iremos saber que a nossa carne que nos mata. Maria, Maria, tente mesmo chegando a cabeleira vermelha como incêndio mais belo do que nós, enquanto nós pensamos que ainda jaz na caixa de sapato, não deixe nosso filho substituir o teu leite, pelo leite das feras.

Maria, Maria, Maria não te iludas com pílulas ou outros métodos, tarde demais para tais providências, essa noite, Maria, essa noite ele gritou seu nome, Maria, Maria.


7. Superbacana.

Toda essa gente se engana, ou então finge que não vê que eu nasci pra ser o superbacana, eu nasci pra ser o superbacana, superbacana, superbacana, superbacana.

Super-homem, superflit, supervinc, superist, superbacana, estilhaços sobre Copacabana, o mundo em Copacabana, tudo em Copacabana, Copacabana. O mundo explode longe, muito longe, o sol responde, o tempo esconde, o vento espalha e as migalhas caem todas sobre Copacabana, me engana, esconde o superamendoim, o espinafre, o biotônico, o comando do avião supersônico, do parque eletrônico, do poder atômico, do avanço econômico.

A moeda número um do Tio Patinhas não é minha, um batalhão de cowboys barra a entrada da legião dos super-heróis, e eu superbacana vou sonhando até explodir colorido, no sol, nos cinco sentidos, nada no bolso ou nas mãos, um instante, maestro. Super-homem, superflit, supervinc, superist, superviva, supershell, superquentão.


8. Paisagem útil.

Olhos abertos em vento sobre o espaço do Aterro, sobre o espaço, sobre o mar, o mar vai longe do Flamengo, o céu vai longe e suspenso em mastros firmes e lentos, frio palmeiral de cimento. O céu vai longe do Outeiro, o céu vai longe da Glória, o céu vai longe suspenso em luzes de luas mortas, luzes de uma nova aurora que mantém a grama nova e o dia sempre nascendo.

Quem vai ao cinema, quem vai ao teatro, quem vai ao trabalho, quem vai descansar, quem canta, quem canta, quem pensa na vida, quem olha a avenida, quem espera voltar.

Os automóveis parecem voar, os automóveis parecem voar, mas já se acende e flutua no alto do céu uma lua, oval, vermelha e azul, no alto do céu do Rio, uma lua oval da Esso, comove e ilumina o beijo, dos pobres tristes felizes corações amantes do nosso Brasil.


9. Clara.

Quando a manhã madrugava calma, alta, clara, clara morria de amor, faca de ponta flor e flor, cambraia branca sob o sol, cravina branca, amor, cravina, amor, cravina e sonha. A moça chamava Clara, agua, alma, lava, alva cambraia no sol.

Galo cantando cor e cor, pássaro preto dor e dor, o marinheiro amor, distante amor que a moça sonha só. O marinnheiro sob o sol, onde andará o meu amor, onde andará o amor, no mar, amor, no mar sonha, se ainda lembra o meu nome, longe, longe.

Onde, onde se vá numa onda no mar, numa onda que quer me levar oara o mar, de água clara, clara, clara, clara, ouço meu bem me chamar. Faca de ponta dor e dor, cravo vermelho no lençol, cravo vermelho amor, vermelho amor, cravina e galos, e a moça chamada Clara, Clara, Clara, Clara, alma tranquila de dor.


10. Soy loco por tí, América.

Soy loco por ti, América, yo voy traer una mujer playera que su nombre sea Marti, que su nombre sea Marti. Soy loco por tí de amores, tenga como colores la espuma blanca de Latinoamérica y el cielo como bandera, y el cielo como bandera. Soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores, soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores.

Sorriso de quase nuvem, os rios, canções, o medo, o corpo cheio de estrelas, o corpo cheio de estrelas, como se chama amante, desse país sem nome, esse tango, esse rancho, esse povo, dizei-me, arde, o fogo de conhecê-la, o fogo de conhecê-la. Soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores, soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores.

El nombre del hombre muerto ya no se puede decirlo, ¿quién sabe? Antes que o dia arrebente, antes que o dia arrebente, el nombre del hombre muerto antes que a definitiva noite se espalhe em Latinoamérica, el nombre del hombre es pueblo, el nombre del hombre es pueblo. Soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores, soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores.

Espero o manhã que cante el nombre del hombre muerto, não sejam palavras tristes, soy loco por tí de amores, um poema ainda existe com palmeiras, com trincheiras, canções de guerra, quem sabe canções do mar ai hasta te comover, ai hasta te comover. Soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores, soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores.

Estou aqui de passagem, sei que adiante um dia vou morrer, de susto, de bala ou vício, de susto, de bala ou vício, num precipício de luzes, entre saudades, soluços, eu vou morrer de bruços, nos braços, nos olhos, nos braços de uma mulher, nos braços de uma mulher.

Mais apaixonado ainda dentro dos braços da camponesa, guerrilheira, manequim, ai de mim, nos braços de quem me queira, nos braços de quem me queira. Soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores, soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores, soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores, soy loco por ti, América, soy loco por tí de amores.


11. Ave Maria.

Ave Maria, ave, gratia plena, ave, dominus tecum, dominus tecum, tecum. Benedicta tu in mulieribus, tu, benedictus frutus ventris tuis Jesu, Jesu. Sancta Maria, sancta Maria, mater Dei, ora pro nobis, ora pro nobis, pecatoribus.

Nunc et in hora, hora, nunc et in hora, hora, hora, mortis, nostra, nostre, amém…


12. Eles.

Em volta da mesa longe do quintal, a vida começa, no ponto final, eles têm certeza do bem e do mal, falam com franqueza do bem e do mal, crêem na existência do bem e do mal, o porão da América, o bem e o mal. Só dizem o que dizem, o bem e o mal, alegres ou tristes, são todos felizes durante o natal.

O bem e o mal, têm medo da maçã, a sombra do arvoredo o dia de amanhã, eis que eles sabem o dia de amanhã, eles sempre falam num dia de amanhã, eles têm cuidado com o dia de amanhã, eles cantam os hinos no dia de amanhã, eles tomam bonde no dia de amanhã, eles amam os filhos no dia de amanhã, tomam táxi no dia de amanhã é que eles têm medo do dia de amanhã, eles aconselham o dia de amanhã, eles desde já querem ter guardado, todo o seu passado no dia de amanhã.

Não preferem São Paulo, nem o Rio de Janeiro, apenas tem medo de morrer sem dinheiro, eles choram sábados pelo ano inteiro e há só um galo em cada galinheiro, e mais vale aquele que acorda cedo, e farinha pouca, meu pirão primeiro, e na mesma boca senti o mesmo beijo, e não há amor como o primeiro amor, eomo primeiro amor que é puro e verdadeiro, e não há segredo, e a vida é assim mesmo, e pior a emenda do que o soneto, está sempre à esquerda a porta do banheiro, e certa gente se conhece no cheiro.

Em volta da mesa longe da maçã, durante o natal, eles guardam dinheiro, o bem e o mal pro dia de amanhã.


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Año: 1968.
Procedencia de la banda: Santo Amaro (Bahía), Brasil.
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1 comentario:

Ana P dijo...

Caetano é fantástico!

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